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Santa Rosa,26/04/2024

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Quem era a divindade Asherah, a esposa de Deus

Fonte: g1.globo.com
Quem era a divindade Asherah, a esposa de Deus
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“Se Asherah for a mulher de Deus, isso seriamente compromete as bases do monoteísmo”, diz pesquisadora britânica ao comentar sobre a personagem controversa. Especialista afirma que há uma tentativa de marginalizar ou apagar a história de Asherah.
BBC
No livro do profeta Jeremias, parte do Antigo Testamento da Bíblia e possivelmente escrito no século 7 a.C., há curiosas menções a uma “rainha dos céus”. Especialistas contemporâneos acreditam se tratar, na verdade, de uma divindade antiga que foi cancelada com o advento do monoteísmo patriarcal: Asherah, a esposa de Javé.
A história se torna ainda mais interessante quando contextualizamos que Javé é justamente o Deus judaico-cristão, ou seja, aquele que “sobreviveu” das antigas mitologias medio-orientais para se tornar a divindade única do monoteísmo. Em outras palavras, Asherah seria então a mulher de Deus.
Defensora desta tese, a teóloga britânica Francesca Stavrakopoulou, professora na Universidade de Exeter, fez um documentário sob o tema, exibido pela BBC. “Se Asherah for a mulher de Deus, isso seriamente compromete as bases do monoteísmo”, diz ela, no programa.
No vídeo, ela promove uma investigação sobre o tema, ouvindo especialistas e mostrando a presença da deusa em escrituras e esculturas do mundo antigo. Na Bíblia hebraica, o nome Asherah aparece 40 vezes, mas, na maior parte das versões traduzidas, o termo foi suprimido e substituído.
É o caso do trecho, constante no livro dos Juízes, em que está escrito que “os filhos de Israel fizeram o que é mau aos olhos do Senhor: eles se esqueceram do Senhor, seu Deus, e serviram aos Baalim e às Asherás” — este excerto é a versão da Tradução Ecumênica Bíblica.
O que era uma deusa, Asherá, acabou reduzido às estatuetas da deusa, o que justificaria o plural. Mas a metonímia se torna ainda mais redutora em outras versões, como na tradução Almeida Revisada Atualizada, em que Asherá é substituída por “poste-ídolo”.
Na famosa tradução para o inglês conhecida como Authorized King James Version, o mesmo trecho usa o termo “groves” (bosques) no lugar de Asherá.
Objetificação para configurar idolatria
Stavrakopoulou identifica isso como um padrão no Antigo Testamento: a substituição de menções originalmente atribuídas à mulher de Deus por simplificações que configuravam idolatria ou elementos da natureza, sobretudo “árvore”, “árvore da vida” e “bosque”.
“A arqueologia hoje mostra que Asherá não foi sempre um objeto”, afirma a pesquisadora, no documentário. “Ela foi uma poderosa divindade, a mulher do Deus chefe El”.
À BBC News Brasil, por e-mail, a pesquisadora definiu Asherah como “o antigo nome hebraico de uma importante deusa adorada em várias culturas levantinas [Levante é uma ampla área do Oriente Médio] no segundo e primeiro milênios a.C.”
Ela ressalta que o conhecimento que temos dela é maior a partir da cidade-estado de Ugarit, onde hoje é a Síria, no final da Idade do Bronze.
“Ela era a mãe dos deuses e consorte do deus-supremo, El”, pontua ela. “Antigas inscrições hebraicas do século 8 a.C. a associam a Javé, a divindade patrona do antigo Israel e Judá. Essas inscrições sugerem que ela era uma deusa protetora, concedendo bênçãos divinas aos adoradores, e que ela desempenhou um papel crucial na mediação entre os humanos e o deus-supremo Javé”, completa.
Para os cananeus, El era o deus criador. E pesquisadores contemporâneos acreditam que o Deus bíblico, Javé, seja a fusão de deuses de mitologias antigas, inclusive El, no processo de monoteização.
“A Bíblia usa a palavra Asherah e a sua forma plural, asherim, várias vezes. O termo é limitado à literatura que foi composta durante e após o reinado de Josias, no fim do século 7 a.C., e aparece de duas maneiras diferentes”, explica à BBC News Brasil o teólogo americano Daniel McClellan, cujo mestrado foi sobre estudos judaicos na Universidade de Oxford.
“Uma das formas de uso é em referência à deusa, mas este não é o uso mais comum da palavra. A maior parte do uso é em referência a uma imagem divina, um ídolo, que pode ter sido representado ou se assemelhado a uma árvore. Este fato resulta, provavelmente, da associação feita entre a deusa Asherah, na arte, com árvores.”
Stavrakopoulou lembra que, embora a Bíblia “frequentemente se refira a Asherah”, isso costuma ocorrer “quase sempre em termos negativos”.
“Ela é lançada como uma divindade ‘estrangeira’, adorada tanto por cananeus quanto por israelitas idólatras e judaítas [referente aos habitantes de Judá], vilipendiados por criar imagens ou objetos sagrados que manifestam sua presença”, contextualiza, lembrando que “essas imagens e objetos também recebem o nome de ‘asherah’”.
“A maioria dos estudiosos concorda que o retrato bíblico de Asherah é deliberadamente distorcido e depreciativo, e que ela provavelmente era adorada como um membro importante de um antigo panteão israelita e judaico, no qual Javé desempenhou um papel de liderança”, acrescenta a teóloga.
A ideia de Asherah como mulher de Deus se confirma por achados arqueológicos que vão além de sua representação imagética, aponta pesquisadora.
BBC
McClellan situa as origens da divindade na Idade do Bronze (de 3300 a 1200 a.C.), entre o povo hurrita, que habitou parte da Mesopotâmia até os séculos 14 ou 13 a.C. De lá, segundo o pesquisador, o culto se espalhou para a antiga Ugarit, a Anatólia (hoje, Turquia), a Fenícia “e o território atualmente ocupado por Israel e Palestina”.
“Ela foi identificada como a consorte ou parceria das altas divindades Anu, da Mesopotâmia, e El, do mundo semítico ocidental, desempenhando assim um papel significativo nos panteões do antigo sudoeste asiático”, complementa ele. “Estava associada à fertilidade e à guerra e, nos primeiros anos de sua existência, estava associada ao mar e à pesca.”
A ideia de Asherah como mulher de Deus se confirma por achados arqueológicos que vão além de sua representação imagética. Conforme conta McClellan — e também mostra Stavrakopoulou no documentário —, antigas inscrições hebraicas foram descobertas em escavações com textos que mencionam Javé “e a sua Asherah”.
“Uma dessas inscrições foi escrita diretamente sobre um desenho de divindades masculinas e femininas com braços entrelaçados”, relata ele. O teólogo afirma que “é provável que Asherah também fizesse parte do primeiro panteão israelita”.
Essas descobertas arqueológicas começaram a ocorrer a partir dos anos 1950. “E o que se encontrou mostra que ela foi uma figura central nesse judaísmo antigo”, comenta à BBC News Brasil o pesquisador Thiago Maerki, estudioso de textos antigos e membro da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
“Nos anos 1960, foram descobertas estátuas quebradas, representando mulheres, perto do Templo de Salomão, em Jerusalém. Acredita-se que o fato de elas estarem juntas seja o indicativo de que foram ali depositadas quando houve a determinação, por parte do rei, da destruição de todas as representações de Asherah”, diz Maerki.
A deusa proibida
Segundo a teóloga Stavrakopoulou, as “tentativas de distorcer e difamar” a deusa provavelmente começaram na segunda metade do primeiro milênio a.C, “depois que o templo de Jerusalém foi temporariamente destruído pelos babilônios em 587 a.C.”.
“À medida que o templo foi reconstruído, o mesmo aconteceu com a adoração a Javé: e Javé tornou-se um deus intolerante com todas as outras divindades, incluindo a deusa Asherah”, comenta ela.
Nesse processo, segundo sua explicação, Javé “assumiu os papéis de outras divindades”. Ao mesmo tempo em que a religião se “masculinizaria”, com a ideia de que “havia apenas um deus, e ele era homem”, Asherah passou a ser tratada como “uma divindade falsa ou ilegítima” e sua adoração passou a ser tachada como “primitiva”.
Em artigo intitulado "Asherah: a deusa proibida", publicado em 2007 na Revista Aulas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a teóloga Ana Luisa Alves Cordeiro explica como apagamento de Asherah se deu durante o processo de transformação das religiões politeístas em uma crença monoteísta.
“Reconstruir a presença da deusa Asherah na vida de mulheres e homens no antigo Israel é um esforço de, a partir de uma perspectiva feminista e de gênero, trazer elementos que nos ajudem numa maior aproximação do que foram os espaços religiosos e vitais deste povo”, escreve ela.
“Esta reconstrução é algo necessário, uma vez que estamos diante de textos sagrados marcados pelo sistema patriarcal, onde há o domínio do pai e quiriarcal, onde há o domínio do senhor.”
Este processo não ocorreu de uma hora para outra e, ao que tudo indica, passou a ser enfatizado nas escrituras a partir do século 8 a.C., com o profeta Oseias equiparando a adoração de outras divindades que não Javé ao pecado da idolatria. É a partir de então, e sob este contexto, que as menções a Asherah começam a ser ressignificadas na literatura antiga.
Cordeiro pontua as modificações da representação da deusa ao longo desses séculos, lembrando que, entre 1800 e 1500 a.C., ela costumava ser esculpida como uma deusa-nua, “destacando o triângulo púbico, emergindo também representações em forma de ramos ou pequenas árvores estilizadas, combinação que vem a ser denominada ‘deusa-árvore’.
Algum tempo depois, essa metáfora arbórea também sofre mudanças, “aparecendo em forma de uma árvore sagrada flanqueada por cabritos ou como um triângulo púbico, que substitui a árvore”.
“Neste período, já se nota a tendência de substituição do corpo da deusa pelos seus atributos, em especial a árvore”, enfatiza a pesquisadora, destacando que houve “uma mudança decisiva no campo das figuras de material mais precioso: as deusas nuas foram substituídas em grande parte por deuses guerreiros (…).”
“A deusa continua perdendo representatividade na religião oficial, onde divindades masculinas ganham cada vez mais força, principalmente a partir de características dominadoras e guerreiras”, afirma ela.
Apesar de evidências históricas desses processo, há ainda uma resistência na aceitação. “A dificuldade ou relutância com que alguns acadêmicos bíblicos encaram a evidência da pluralidade divina (…) pode muito bem refletir, em parte, um choque cultural ou um desconforto decorrente das preferências religiosas e filosóficas das tradições intelectuais ocidentais (…)”, escreve Stavrakopoulou, no capítulo que assina do livro "The Bible and the feminism".
“O próprio conceito de um ‘Deus’ monoteísta e transcendente, que continua a dominar o discurso cultural ocidental, é o de uma divindade única e solitária de desempenho e envolvimento ‘macro-religioso’ (…).”
McClellan conta que as tentativas de marginalizar ou apagar Asherah começaram “provavelmente por volta do reinado de Josias”, no século 7 a.C., “que implementou uma campanha de centralização do culto para garantir” um monopólio da fé no templo de Jerusalém.
Datam desta época livros bíblicos como o do Deuterônomio. “Um dos principais objetivos do Deuteronômio e de outros livros bíblicos que se lhe seguiram, conhecidos como literatura deuteronomista, era eliminar o culto a Asherah”, diz o teólogo.
A tática principal era associar o nome dela a um ídolo, e não a uma deusa. “Outra era recontar as histórias dos reis que vieram antes de Josias e pintá-los como reis perversos que estavam conscientemente violando a lei quando permitiam a adoração de Asherah”, acrescenta.
Deu tão certo que, segundo frisa o teólogo, a partir de meados do século 4 a.C. “o judaísmo já havia praticamente esquecido que a deusa Asherá havia feito parte do panteão israelita primitivo”.
Esse processo foi intensificado com a ajuda do exílio babilônico, ocorrido no século 6 a.C. “A literatura que foi escrita para ajudar Israel a permanecer fiel à sua identidade étnica e ao seu Deus Javé, na sequência dessa crise, ajudaram a reescrever a compreensão que Israel tinha de si próprio”, analisa McClellan.
“Isso incluiu a vilipendiação do culto a Asherah, que tinha lugar antes do reinado de Josias, e a autocompreensão de Israel avançaria dando prioridade a esse novo entendimento do papel de Javé como objeto exclusivo do culto israelita.”
O teólogo conclui que “a continuação do culto a Asherah não teria qualquer chance em tal ambiente”.
“Nesse contexto patriarcal, a figura de Javé se torna símbolo da representação do sagrado masculino, que de fato justificaria a dominação masculina em vários aspectos sociais, econômicos, religiosos e políticos”, contextualiza Maerki.
“A gente pode dizer que a religião oficial de Israel vai adquirir uma identidade unicamente masculina e o feminino, assim como a deusa Asherah, vai para o plano secundário.”
Uma sociedade que privilegia o masculino
Talvez estejam aí as raízes da sociedade patriarcal que se formaria no Ocidente, afinal.
“O apagamento de Asherah e o surgimento dessa cultura mais centrada na figura de um Deus masculino é, apesar de distante da nossa época e da nossa realidade contemporânea, algo que tem muito a dizer simbolicamente sobre as relações entre homens e mulheres no nosso mundo”, reflete Maerki.
“Porque vivemos em um mundo marcado pelo machismo, pela centralidade do homem, e pela luta das mulheres cada vez mais por igualdade.”
“Quando a gente vê o apagamento da deusa, estamos pensando naquilo que seria o início de uma cultura patriarcal que, depois, imperaria no mundo”, completa.
Mas é uma história que vem sendo revisitada e reescrita. Como comenta Stavrakopoulou em seu texto, “mais recentemente, a maior parte dos estudiosos bíblicos e historiadores das antigas sociedades israelitas e judaicas passaram a reconhecer este retrato antigo”.
Ela acrescenta que, nas últimas décadas, a maneira de estudar o assunto vem sofrendo mudanças, “motivas em parte pela influência persuasiva da crítica feminista, queer, pós-colonial e sociocientífica” e isso desafia “seriamente a confiança na fiabilidade histórica” de como a Bíblia retrata o passado, bem como mostra como tanto os escritores dos textos considerados sagrados quanto seus estudiosos ao longo dos últimos séculos “podem, muitas vezes, terem deturpado as realidades religiosas”.
No e-mail trocado com a reportagem, a teóloga acredita que Asherah foi vítima de um longo e exitoso processo de difamação. “A campanha da Bíblia contra Asherah foi tão bem-sucedida que, mesmo no mundo antigo, sua adoração como deusa plena logo desapareceu”, afirma. “Com o surgimento do monoteísmo, consolidou-se a crença de que havia apenas um deus, e esse deus era masculino.”
Stavrakopopulou, contudo, entende que vestígios desse feminino divino resistiram tanto no judaísmo como no cristianismo.
“No judaísmo antigo, a sabedoria divina estava intimamente associada a uma ‘árvore da vida’, e a sabedoria de Deus era personificada como figura semelhante a uma deusa criada pelo próprio Javé”, diz.
“Em vários textos judaicos antigos, ela atua como mediadora entre os adoradores e o Senhor. Em algumas formas de cristianismo tradicional, Maria, a mãe de Jesus, tornou-se uma mãe celestial, mediando bênçãos entre Deus e seus adoradores.”




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